2016 não foi o pior ano da história, apesar da ênfase dada pela grande mídia às consequências catastróficas da hiperglobalização. É cada vez mais claro: classes trabalhadoras de nações ricas ficaram para trás na comparação com seus pares na China e com as elites de seus próprios países, culpando a modernidade e inflamando nacionalismos cujos resultados nós comentamos à exaustão.
Ideais de livre comércio foram para o paredão. Temer, Trump, Farage e Erdoğan ganharam suas provas do líder. As acusações entre participantes do reality global saíram dos confessionários políticos, ganharam torcida, e vêm alimentando a primeira grande ciberguerra entre estados. Todo o mundo está vigiando. Todo o mundo está assistindo.
Parece cada vez mais difícil escolher de qual lado ficar. Não porque nos faltam valores. Mas porque nos falta confiança: no líder, no vizinho, na informação.
Não se acredita como antes na esculhambada mídia tradicional. Não se louva mais a democracia — polarizadora — das redes sociais. No meio das fake news e das pós-verdades, nos recolhemos às nossas filter bubbles, temerosos em debater até mesmo com quem passamos o Natal juntos (que atire a primeira pedra quem nunca saiu de um grupo de família no whatsapp).
A equação é simples: menos conversa = menos consenso. Quer mudar o rumo das coisas? Pois bem, como convencer alguém que não vai nem mesmo te escutar?
2016: o ano que pôs em xeque a democracia
2016 foi um ano notável pra quem gosta de uma boa discordância.
Os brasileiros voltaram atrás na escolha que fizeram para presidente; os ingleses voltaram atrás na escolha que fizeram pela União Europeia; os colombianos não conseguiram concordar com um histórico acordo de paz.
Os consensos escassearam na esfera política. E uma questão importante foi levantada acerca da forma de governo mais comum no mundo: será que a democracia é a melhor maneira de levar um povo a cooperar em torno de um consenso? E mais: existe consenso sobre o que é — ou como deve ser — uma democracia?
Uma das definições mais influentes data de 1991, e, para a surpresa de muitos, não menciona “povo”, “poder” nem outras palavras-chave regurgitadas por muitos educadores que tratam o tema como um tabu:
“A democracia política moderna é um sistema de governo em que os governantes são responsabilizados por suas ações no âmbito público por cidadãos […]”.
Vale ressaltar a ausência das eleições na definição. Schmitter e Karl não só omitem o conceito como chamam de “falácia eleitoralista” a noção de que tais processos, por si só, implicam uma democracia.
Eleições são só um componente do sistema, cujas versões modernas oferecem vários outros processos e canais para a participação política. A democracia ateniense, aliás, desconhecia as eleições que tanto louvamos hoje em dia: por lá, oficiais políticos eram sorteados (os atenienses acreditavam que o sorteio era mais democrático que a eleição), e exerciam funções restritas, como auferir as decisões tomadas pela assembleia popular. Da assembleia, esperava-se o consenso quanto a um curso comum de ação, depois da escuta e ponderação da alternativas viáveis, estas muitas vezes apresentadas ou sumarizadas pelos oficiais políticos.
Cargos públicos representavam de fato uma carga, um fardo, um peso a ser carregado. Oficiais políticos trabalhavam para o povo, e não o contrário (quem paga impostos sabe que conosco acontece literalmente o contrário). E o consenso era uma premissa do progresso, em vez da ordem (que pode muito bem ser alcançada sem ele).
Ou seja: devemos pensar duas vezes antes de vangloriar a democracia como um ideal político imaculado e irretocável. Para mais argumentos, e uma versão muito mais bem contada da história, vale a pena ver esse vídeo:
Democracia vs. Consenso
De uma perspectiva objetiva, a democracia é um sistema que permite à maioria impôr vontades a uma minoria, através de processos desenhados, aprovados e executados por representantes dessa maioria. Já o consenso é um processo decisório coletivo, onde o interesse de cada membro é explicitamente reconhecido, e a solução que melhor atenda às necessidades do grupo é acordada.
A oposição entre a democracia e o consenso é uma falsa dicotomia. Ambos são independentes, e podem se complementar.
O mecanismo fundamental do consenso é o debate. O mecanismo fundamental da democracia moderna é a votação. O debate é um processo. A votação é um procedimento. O consenso considera interesses individuais para dar forma a uma decisão coletiva. A votação considera decisões individuais e registra aquela que beneficia o maior subgrupo dentro de um grupo maior. O consenso tem natureza agregadora. A votação tem natureza polarizadora.
Consenso não significa unanimidade: mesmo que nenhum indivíduo prefira uma determinada alternativa, se todos concordarem que ela é a melhor para o grupo, a decisão ainda pode ser consensual. E, mais importante: a votação pode ser um componente do consenso. Mas é raro que o consenso aconteça em uma votação isolada.
Votações, no entanto, são mecanismos eficientes de proteção das democracias contra “ameaças” externas à estabilidade do próprio sistema. Quando um político percebe uma ideia “ameaçadora” e demanda uma votação antes que os votantes tenham tempo de absorvê-la, processá-la e debatê-la, ele blinda a democracia. Afinal, infelizmente, ideias transformadoras geralmente soam impopulares quando introduzidas.
Você viveria numa não-democracia?
Se a democracia não fosse um tabu (e você não pudesse ser acusado de fascista ou antipatriota por condená-la), viver numa não-democracia seria uma hipótese a se considerar?
Pois é isso que o economista turco Dani Rodrik sugere com o seu Trilema da Globalização (como um dilema, mas com três alternativas em vez de duas).
O conceito é dissecado em um livro, mas a ideia básica é a de que “[…] o fluxo de bens, serviços, pessoas e capitais superou a capacidade dos processos políticos em acomodarem-nos” (William H. Janeway, 2016), levando-nos a uma encruzilhada: o dito trilema. Sabe quando te dizem que, na hora de contratar um serviço, entre o “bom”, o “rápido” e o “barato”, você só pode escolher por duas dessas três características? O tradeoff aqui é tão duro quanto.
Rodrik postula que, “se quisermos levar a globalização adiante, é preciso abrir mão da autonomia dos estados-nação ou da política democrática como princípio. Se quisermos manter e aprofundar a democracia, devemos escolher entre a manutenção dos estados-nação soberanos e a integração econômica internacional. E se quisermos seguir com estados-nação como temos hoje, ou abandonamos o ideal democrático ou deixamos para trás a promessa de uma globalização economicamente próspera” (D. Rodrik, 2012).
Em termos mais simples: entre três opções — a democracia, a autonomia das nações e a a bonança econômica — só podemos ficar com duas.
Na prática, como chegar a esse tal de consenso?
Decisões quanto ao trilema postulado por D. Rodrik estão sendo tomadas dia após dia — muitas delas a partir de algumas das votações mais polarizadoras dos últimos tempos.
Tudo bem: votações são mais práticas que decisões tomadas consensualmente — apesar de produzirem efeitos mais frágeis e suscetíveis à revogação. Já falamos sobre quantas vezes vimos povos “voltarem atrás” somente em 2016. Decisões consensuais são mais lentas, mas produzem estados que tendem a perdurar no longo prazo.
Um aspecto-chave do processo consensual que combate a polarização é a predisposição a se ampliar ao máximo o leque de alternativas em consideração. A decisão tomada não deverá ser precisamente a escolha original de algum membro do grupo, mas acredita-se ser a mais justa para o coletivo. No fundo, opta-se pela justiça em detrimento da precisão.
Outro princípio do processo consensual é o da proporcionalidade: o de que todos os afetados por uma determinada decisão devem influenciá-la, proporcionalmente ao quanto serão afetados. Mesmo grupos grandes, onde muitos têm o que opinar, não implicam que todo indivíduo precisa se expressar formalmente. Às vezes, basta que aqueles a se expressarem considerem interesses alheios em seus inputs. Desse modo, temos um processo justo mas impreciso, em vez de um processo injusto mas preciso.
Qualquer votação (a não ser que unânime) presume o discernimento entre vencedores e perdedores — algo que soa contraintuitivo quando se compartilha a crença de que o melhor resultado possível é aquele que beneficia a todos os envolvidos, em maior ou menor grau.
Há de se reconhecer, é claro, que impasses acontecem, e muitas vezes o voto pode ser a única maneira de solucioná-los. Entretanto, isso não impede o consenso de constituir o processo padrão para a tomada de decisões, com as votações sendo usadas como último recurso.
A intenção aqui não é a de propor um modelo de governança que resolva o Trilema da Globalização, até porque passos nesse sentido já estão sendo dados. Democracias consensuais existem ou já existiram na Suíça, na Bélgica e em outras partes da Europa. Tem um magnata sueco oferecendo U$5 milhões para quem propuser um modelo de governança global que sirva de alternativa à ONU e outras instituições do gênero. E há um novo tipo de tecnologia que vem se popularizando desde o fim da década passada, cujo maior potencial talvez seja o de transformar a maneira como nós, humanos, governamos a nós mesmos e tomamos decisões coletivas.
A blockchain — e tudo o que a cerca — requer mais uma série de leituras para ser superficialmente compreendida, mas por ora nos basta dizer que trata-se de um modelo de protocolo (uma arquitetura infraestrutural sobre a qual todo tipo de aplicação pode ser desenvolvida) que gira em torno de um mecanismo eletrônico de geração de consenso.
Detalhes e exemplos práticos ficarão para um próximo texto. Seria leviano questionar o tabu da democracia moderna e introduzir a noção de que podemos governar a nós mesmos sem autoridades centrais (livres de abusos de poder político e até mesmo sem um estado como conhecemos) em menos de duas mil palavras. Boas leituras podem ser encontradas nos links espalhados ao longo desse texto.
E não seria justo chegar a um ponto final sem mencionar a forma mais elevada de consenso jamais alcançada por nós. A concordância mais inquestionável entre as maiores religiões e crenças da Terra. O único traço da nossa espécie que todo humano reconhece ser um caminho para maximizar o bem estar coletivo, minimizar o sofrimento e preservar a essência de cada um. O amor.
Que 2017 traga muito amor — e pelo menos um pouco mais de consenso — para todos nós.