🎮 Escravos Virtuais

O futuro do trabalho é tão brilhante quanto parece?

Felipe
9 min readMay 15, 2020

Originalmente publicado na Paradigma.

As últimas décadas trouxeram rápida concentração de riqueza em boa parte do planeta, em contraste à mobilidade social que floresceu ao longo do século passado.

Porcentagem da renda que fica com os 1% mais ricos da população. A disparidade vem crescendo em países anglófonos, e estagnou no Japão e Europa Ocidental.

Oligarcas detém perto de 50% dos ativos em existência. Cinco empresas constituem 20% de toda capitalização de mercado do S&P 500. Bolsas de ações andam vibrantes — distanciadas socialmente da realidade do trabalhador médio.

A pandemia levou a uma expansão inédita da base monetária, canalizando dólares fresquinhos para instrumentos financeiros, e enriquecendo bancos hegemônicos e especuladores profissionais — não exatamente o tipo de gente que você acha que se beneficia com o Corona-voucher.

☁️ A Keiretsu Está na Nuvem

Keiretsu (系列) é um termo japonês que designa um modelo empresarial de coalizão. Interesses econômicos propelem integração vertical, horizontal e trans-setorial, formalizada com participações de capital compartilhadas. O exemplo mais citado é o do conglomerado entre Mitsubishi, o Banco de Tóquio e uma rede extensa de fornecedores e distribuidores no Japão.

O exemplo mais notável, hoje, é o das imperadoras da nuvem.

Alibaba, Amazon, Google, Facebook aprisionam com efeitos de rede quem lhes fornece dados — você; adquirem concorrentes em marcha de guerra (quando não é possível, copiam-lhes); e dormem junto com os reguladores que legislam seus campos de batalha.

No meio da crise, como uma startup compete por talento com uma empresa destas, que dispõe de um caixa centi-bilionário para atrair novas promessas?

Do outro lado da “mesa”, metade dos lares norteamericanos (e muito mais, no Brasil) não tem sequer um centavo em poupanças de emergência. Incertezas se amontoam enquanto empregos evaporam.

Uma nova classe trabalhadora se forja entre a cruz e a espada: agarrar-se à lembrança dos salários de janeiro de 2020; ou aceitar jornadas maiores e remunerações menores, à mercê de uma Keiretsu qualquer?

Empregos perdidos nos EUA — percentual relativo ao pico anterior. Em vermelho, a disparada do desemprego em 2020. Em azul, o choque e a retomada em 2007/08.

Uma reação provável é o clamor generalizado pelo que se pode chamar de “socialismo oligárquico”: regime em que a noção de emprego é substituída por alocações arbitrárias de dinheiro recém-criado pelo Banco Central.

Popular no Vale do Silício, a ideia de se anestesiar a força de trabalho ociosa com crédito criado especificamente para esse propósito pode se revelar um dos legados mais duradouros da pandemia (antes da Renda Básica Universal, Marx falava em “esmola ao proletariado”).

Pondere você: prefere uma sistema que te pague pra ficar em casa; ou prefere entregar pizzas durante 12 horas por dia para conseguir manter a família alimentada?

🃏 Gig Workers, ISAs & Tokens Pessoais

O nivelamento da arena para a força de trabalho digital é inevitável.

Por que uma empresa americana vai contratar alguém nos EUA quando encontra o mesmo recurso, em outro país, por metade do preço? Por que você faz aulas de idiomas com um professor (virtual) brasileiro, quando encontra talento equivalente em Angola, muito mais barato?

Trabalhadores de nações ricas com formação commoditizada serão esmagados nesse cenário. A de-globalização da manufatura (alô, China) se choca com a globalização do colarinho branco.

Uma possibilidade que afaga os ânimos (pelo menos no terceiro mundo) é a de que a redução dos salários urbanos médios e o aumento da demanda por trabalhadores periféricos ou marginalizados reverta uma tendência teimosa de desigualdade.

Aventureiros desbravarão novas formas de auto-capitalização. Nos EUA, a Lambda School popularizou um modelo de educação pós-pago (Income Share Agreements): o aluno quita sua formação com parcelas do salário, somente quando estiver empregado e ganhando mais que U$50 mil por ano.

Quase 500 profissionais tokenizados, a uma capitalização de mercado de 15 milhões de dólares. Você pode comprar e vender "direitos" ao tempo destas pessoas, 24 horas por dia, 7 dias por semana, em mercados incensuráveis como o Uniswap.

No universo das criptomoedas, há freelancers tokenizando suas carreiras — como se vendessem ações (tokens) de si mesmos, declarando que cada unidade (livremente negociável) pode ser redimida por horas de trabalho, ou até dar direito a uma porção de fluxo de caixa futuro.

Apesar de sugerirem consequências potencialmente macabras (e irem de encontro à lei, em muitas jurisdições) estes experimentos merecem exaltação.

Não se deve “atirar no mensageiro. É lugar comum apontar o dedo para as condições precárias oferecidas por Uber e iFood, mas, se estes não existissem, a situação do emprego no Brasil seria ainda mais catastrófica. Não foram eles que nos colocaram neste buraco. Mas eles fazem parte do buraco — e nós precisamos reconhecer onde nos metemos.

🏰 Feudalismo Digital

Fala-se sobre "capitalismo de vigilância" como se fosse possível distinguir uma coisa da outra. Não é (mais).

O tecido vigilante é um predicado do estadismo moderno. Sem ele, a noção da democracia liberal é insustentável. Políticas públicas assistencialistas, proteção social, serviços gratuitos na internet: cada uma destas features, quer você goste ou não, é um dos pontos que costura essa malha.

O governo está monitorando a sua localização por GPS para garantir o cumprimento da quarentena. Você acredita na falácia dos "dados anonimizados"?

Eis que o “fluxo de bens, serviços, pessoas e capitais superou a capacidade dos processos políticos em acomodarem-nos”, levando-nos a uma encruzilhada (Janeway, 2016).

Rodrik (2012) postula que, se quisermos levar a globalização adiante, é preciso abrir mão da autonomia dos estados-nação ou da ordem democrática.

Se quisermos aprofundar a democracia, devemos escolher entre a manutenção dos estados-nação soberanos e a integração econômica internacional. Se quisermos seguir com estados-nação como temos hoje, ou abandonamos o ideal democrático, ou deixamos para trás a promessa de uma globalização economicamente próspera.

Entre três opções — a democracia, a autonomia das nações e a bonança econômica — só podemos ficar com duas.

D. Rodrik: o paradoxo da globalização, 2012.

A crise de 2020 dizimou demanda em quase todos os setores da economia real. Com desemprego sustentado em níveis de 15–30%, o prospecto da efervescência civil é real.

O primeiro lockdown é para nos proteger do vírus. O enésimo lockdown vai ser pra nos proteger uns dos outros.

Qualquer paixão pelo Estado dura até que se consiga um emprego. Qualquer paixão pelo capitalismo dura até que se seja demitido.

🕳️ Epistemologia Tribal: Uma Nova Idade das Trevas

Testemunhamos a emergência de uma epistemologia tribal. Alguns de seus sintomas são o hiper-partidarismo, o desdém populista pela ciência e o esvaziamento factual do discurso político.

A origem dessa epistemologia está na ideia de que a verdade não é determinada pelo poder cumulativo das evidências, mas sim pela maneira como hipóteses se alinham à narrativa encenada pelo líder em voga.

Julgamos como verossímeis as notícias que reforçam os vieses em que já acreditamos. Evidências contrárias a nossos preconceitos — a matéria prima do método científico — são desmoralizadas como fake news.

O seu feed não é programado (pela oligarquia) pra te entreter. Ele é programado para te deixar put@. A ponto de necessitar expressar discordância (ou precisar, irresistivelmente, passar adiante aquele “fato” auto-congratulatório).

Para que Roma mantivesse sua civilização sob controle, em tempos de estresse econômico, conforme escravos suplantaram a classe média, a ordem medieval se tornou intimamente dependente dos esforços caritários da Igreja Católica.

Pois as instituições que nos forneceram (ou chancelaram) a verdade, desde a proliferação da prensa até o começo da internet, agora, parecem não servir mais. O povo anseia por novas devocões.

Na última década, Bolsonaro, Trump, Farage & cia. colocaram ideais de livre comércio no paredão.

Classes trabalhadoras de nações ricas ficaram para trás na comparação com seus pares na China e com as elites de seus próprios países. A culpa recai sobre a “modernidade” e inflama nacionalismos latentes que resistem ao teste da globalização.

A oligarquia globalista é o equivalente moderno da aristocracia medieval. Assim como os bárbaros — que se aproveitaram do caos para lotear terras durante a queda do Império Romano — posicionam-se como maiores beneficiários da recessão impulsionada pelo distanciamento físico.

O clero que lhes suporta, hoje, é secular: influenciadores na mídia, na academia, no aparelho burocrático e nos cantos obscuros do setor “sem-fins-lucrativos” da economia, desfrutando de simbiose profunda com as elites.

Patrulhando a quarentena e garantindo a adesão às normas, em Singapura. Lembra quando você via os vídeos destes robôs dançando, e achava fofinho?

Como suas contrapartes medievais, dizem-se motivados pela vontade de fazer bem aos outros, em detrimento do auto-interesse. A justificativa para suas instruções costuma partir de uma premissa de “superioridade moral”.

🎮 A Próxima Fase do Jogo

O título deste texto não é hiperbólico. A possibilidade da escravidão virtual é uma sombra real no horizonte.

Muitos autores, debruçando-se sobre a maneira como produzimos e "consensualmente entregamos" dados para as titãs da internet, alertam que, de certa forma, isto já está acontecendo (Weyl & Posner, 2018).

O futuro do labor tem dois lados: acima das APIs, e abaixo das APIs. Ou você dá ordens para os robôs, ou você trabalha para eles.

CAPTCHA: Faz anos que você vem ajudando o Google a identificar casas no Maps; digitalizar livros e interpretar imagens cotidianas. Além de alimentar os algoritmos, será que estes dados também não podem ajudar a codificar o seu modo de pensar?

Na terceira temporada de WestWorld, série da HBO, uma personagem com a mãe doente precisa cumprir tarefas-relâmpago (como matar ou sequestrar alvos), emitidas por um app de celular, para coletar recompensas e poder bancar as contas do hospital.

Substitua "matar ou sequestrar alvos" por "dirigir a moto até um destino", e você verá onde quero chegar.

Nossa capacidade de imaginar contornos para a relação entre homem e máquina é limitada pela linguagem — o código — de que dispomos.

Em poucas décadas, os computadores pessoais migraram das mesas para os nossos colos, para nossos bolsos, para nossos óculos, para dentro de nossas orelhas. Não foi à força. Nós idolatramos o AirPod. Quando chegar a hora, aprenderemos a amar chips subcutâneos com microprocessadores da Keiretsu.

O que os super-aplicativos vão te incentivar a fazer, quando tiverem acesso irrestrito não só a suas informações geográficas, financeiras e comportamentais — mas também aos seus medos, sonhos, dores e prazeres?

A distopia não é inevitável. Só se materializará se assim desejarmos. Ninguém vai te convidar para habitar o lado de lá: é você quem vai suplicar por uma vaga.

Não é segredo para ninguém que a Uber investe ativamente para substituir toda sua frota por carros autônomos. Seus motoristas costumam exaltar justamente a liberdade que o ofício provê. Dá pra dirigir nos horários que mais convém — o que muitos cargos de colarinho branco não oferecem.

Conforme as “APIs que orquestram labor humano” ficam mais espessas, amplia-se o abismo entre os cargos acima e abaixo delas.

Tendemos a superestimar riscos imediatos e subestimar riscos distantes no tempo. Abrimos mão de muita coisa em nome de um pouco de liberdade hoje; mas raramente nos questionamos sobre os custos a longo-prazo.

É hora de se fazer novas perguntas. Um pouco menos de

"O que eu posso fazer para que os robôs SE tornem melhor"?

E um pouco mais de

"O que eu posso fazer para que os robôs ME tornem melhor"?

Referências

--

--