🎲 Meta-Jogos: Aquilo Que Não Te Contaram Sobre as Competições

Sobre todas as regras que não vêm escritas no manual.

Felipe
8 min readMar 3, 2020

Nenhum jogo na vida é unidimensional.

Por cima de qualquer jogo existe o meta-jogo. Trata-se do "jogo sobre como se joga o jogo".

Meta-jogos estão onde quer que se observe: no esporte, na academia, no convívio social e no mercado financeiro. O caminho para a expertise em qualquer domínio passa por identificá-los — e saber jogar.

Pontos de origem mais frequentes das cestas na NBA, em 2001–02 e 2019–20. O quê mudou no meta-jogo? via Kirk Goldsbery

1. Do Par-ou-Ímpar às Artes Marciais

Uma vez tirei par-ou-ímpar com 300 pessoas na rua para um trabalho de estatística na faculdade. Entre par e ímpar, descobri uma preferência latente, e por consequência, uma jogada específica que elevava as chances de ganho de 50% para ~69% — dependendo do perfil do oponente.

Nenhuma das pessoas que assistiu à apresentação dos resultados manteve seu estilo de jogo inalterado. Dali em diante, todo par-ou-ímpar que eu disputei (com quem sabia da maldita pesquisa) foi precedido por uma troca de olhares suspeita e um turbilhão de raciocínios:

"Quando foi a última vez que joguei com ele mesmo? Sigo a estatística ou devo ir contra? Ele sabe que eu me lembro da 'jogada certa', ou acha que já me esqueci?".

Mesmo o jogo mais simples pode ser subvertido pelo seu meta-jogo. Jogos complexos podem ter camadas e camadas deles.

Nos anos 90, a linha de 3 pontos foi movida para mais perto da cesta numa busca obsessiva da NBA por placares mais elásticos.

Quando a Federação Internacional de Judô baniu “agarrar as pernas” do oponente, em 2010, uma série de movimentos clássicos tornou-se obsoleta. O judô que existe hoje é radicalmente diferente, com novas estratégias, estilos e combinações técnicas — respostas às novas regras, reações a essas respostas, e assim sucessivamente.

2. Equilíbrio e Desequilíbrio

Meta-jogos se acendem quando o equilíbrio do jogo é abalado.

Não há um termômetro científico de equilíbrio para consultar: o único jeito de ler um meta-jogo é se atentando a mudanças no comportamento dos outros jogadores.

Mesmo no caso de jogos "estáticos", com regras imutáveis (ou não-formalizadas), o meta pode mudar quando competidores lançam mão de estratégias inéditas dentro do espaço de possibilidades pré-existente.

Repare na evolução do recorde (masculino) de salto em altura. Em 1968, Dick Flosbury inventou o salto de costas (e obsoletou o salto em tesoura).

Evolução do recorde masculino no salto em altura. Fonte: IAAF

O objetivo e as regras do salto em altura não sofreram alterações drásticas: "salte o mais alto que puder; não encoste na vara".

O que mudou foi o contexto, e com ele, o meta-jogo. No começo dos anos 60, os atletas aterrissavam em serragem. Em 1955, o termo "espuma sintética" foi cunhado pela primeira vez; ao longo da década seguinte, o material se popularizou, e passou a ser usado como "pista de pouso" em competições.

Aterrissar em colchões de espuma derrubava a premissa de que era preciso cair de pé. O equilíbrio do jogo ruía aí. Dick Fosbury podia tombar sobre seu pescoço sem correr risco de vida.

Foi um tato para o meta-jogo que o levou a praticar novas formas de salto durante anos, e acumular vantagem até que todos os seus oponentes descobrissem que o meta-jogo também tinha evoluído para eles.

Técnicas predominantes no salto em altura, ao longo das décadas.

3. Carreira

Qualquer um que trabalhou com e-commerce teve de aprender conceitos básicos sobre marketing digital: a ideia do funil, e maneiras de medi-lo; a jornada de compra; segmentação…

Em um outro nível estão as habilidades específicas de cada canal. Tratam-se de skills táticos: alguns marketeiros são melhores em e-mail marketing; outros, em mídia paga; alguns, em otimização para mecanismos de busca. Um subgrupo pequeno consegue montar um time que abarque todos esses talentos e escalá-lo, para um determinado tipo de produto.

Essas habilidades são específicas e complexas. Bons marketeiros seguem "as boas práticas" de seu canal. Ótimos marketeiros acompanham a evolução dessas "boas práticas". Os melhores marketeiros… jogam o meta-jogo do marketing.

Esse meta-jogo emerge da constatação de que a eficiência de todo canal de marketing decai com o tempo. Pense nos anúncios que você recebia no Facebook, depois no Instagram, então no Instagram Stories…

Os melhores marketeiros são aqueles que conseguem avançar as "melhores práticas" rápido o suficiente para se manter adiante do "resto", ou que desenvolvem suas estratégias para novos canais a tempo de evitar a queda de eficiência nos antigos.

Qualquer carreira tem os seus próprios meta-jogos.

4. Dinheiro

Versões antigas do "Landlord's Game". Originalmente, o jogo não demorava uma eternidade para acabar.

Lembro-me de descobrir o meta-jogo do Banco Imobiliário em noites de verão na casa de praia dos avós.

No começo, todos correm: querem comprar os terrenos mais valiosos, ou completar logo uma volta no tabuleiro para ganhar R$ 200 do banco.

Quem deu a sorte de abocanhar a Av. Atlântida e a Vieira Souto desponta na partida. Num 2º momento, a pressa dá lugar à meticulosidade: no meta-jogo, os terrenos mais valiosos deixam de ser os mais caros e passam a ser aqueles que faltam para um oponente completar todas as cartas de uma cor — podendo, assim, começar a construir casas e hotéis.

Quando o primeiro competidor se dá conta disso, o jogo muda. Torna-se um fluido emaranhado de barganhas, bloqueios, negociação e adaptação ao que o resto dos jogadores está fazendo.

Num 3º momento, é só a proximidade com o banco que importa, conforme todos os terrenos foram adquiridos e o bem escasso principal passa a ser capital (para construir imóveis). A regra oficial não permite empréstimos, mas, nos meus jogos na praia, sempre tinha um jeitinho.

É injusto comparar os meta-jogos do Banco Imobiliário aos do "dinheiro de verdade" — no tabuleiro, a maioria das transações são coercitivas ("caiu nessa casa, pague aluguel") ou acontecem ao acaso.

Mas, a algumas camadas de profundidade, os meta-jogos do Banco Imobiliário revelam sim aspectos importantes sobre os "meta-jogos do dinheiro real".

Poucas pessoas sabem, mas o Banco Imobiliário era muito diferente na origem. Foi inventado por uma mulher, feminista, no início dos anos 1900. Elizabeth Maggie subscrevia à escola econômica Georgista, e desenhara o jogo justamente para ilustrar a injustiça em se receber renda baseada em vantagens randômicas na distribuição de propriedades.

Maggie criara 2 conjuntos de regras: um anti-monopolista, e o outro monopolista.

Enquanto o 2º era parecido com a versão atual, o 1º remunerava os jogadores igualitariamente por toda renda produzida — o jogo acabava quando até mesmo o jogador mais pobre já tivera duplicado sua riqueza original. A graça era justamente fazer com que os jogadores comparassem os resultados das duas versões.

Maggie vendeu os direitos do jogo para Charles Darrow, empreendedor que co-fabricou o produto com a Parker Brothers (hoje, subsidiária da Hasbro) e ficou rico com royalties. Maggie morreu viúva, sem o devido reconhecimento.

Trata-se de uma anedota e tanto sobre os "meta-jogos do dinheiro real".

Lizzy Magie, inventora do Banco Imobiliário. Fotografia: Anspach Archives

Durante o processo, Darrow simplificou as regras do jogo original. O manual oficial do Banco Imobiliário, hoje, não deixa dúvida sobre a versão que prevaleceu, dentre as duas originalmente propostas por Maggie:

Objetivo: se manter solvente enquanto se força todos oponentes à bancarrota através da compra, desenvolvimento e exploração de propriedades imobiliárias.

5. Meta-Jogos Recursivos

A origem do desequilíbrio em um jogo pode ser intrínseca (uma nova estratégia viável é descoberta entre jogadores) ou extrínseca (uma mudança nas regras). De qualquer maneira, é sempre a resposta dos jogadores às dinâmicas do jogo que constitui o meta-jogo.

No caso de jogos sem um objetivo definido; ou com o mero objetivo de "se manter jogando até o fim", não é incomum que o meta-jogo subverta completamente o jogo. Entram os meta-jogos recursivos.

O Big Brother tem meta-jogos recursivos. A Bolsa de Valores também.

No BBB20, Pyong tem uma estratégia matadora no jogo: consegue se esquivar de votos e da berlinda, e tem alta influência sobre a montagem dos paredões. Mas Prior tem uma meta-estratégia que suprime a primeira: catalisa consenso na ideia de que o modo de jogo de Pyong é condenável, e lhe deve custar a reprovação no jogo. O embate no BBB20 não se dá mais no nível do jogo, mas gira em torno do controle sobre o meta-jogo.

Na Bolsa de Valores, as diretrizes do jogo são claras e objetivas: "compre barato e venda mais caro". O (primeiro nível de) meta-jogo é comportamental e subjetivo: "aprenda a reconhecer quando o consenso está subvalorizando ou supervalorizando um determinado ativo, e explore oportunidades de jogar com as crenças dos outros — muito mais do que com os ativos em si".

6. Moral do Jogo

O meta-jogo muda sempre que uma nova ferramenta de jogo emerge.

Novas ferramentas geram novas opções. Novas opções significam novas estratégias viáveis.

Uma nova ferramenta pode ser concreta como um composto químico recém-inventado; ou abstrata como um insight moral.

Não importa se te desperta desdém ou desgosto: havendo uma opção nova em cena, é preciso prestar atenção (à maneira como os outros reagem a ela).

Meta-jogos não são determinísticos. Não é porque você enxerga uma dinâmica com 100% de convicção que o resto dos jogadores vai reagir a ela. Meta-jogos emergem do consenso.

Farejar bolsões de consenso emergente pode te ajudar a identificar mudanças em um meta-jogo. Antevê-las é excepcionalmente difícil. Muitas vezes, trata-se de um exercício fútil.

Não adianta investir na bolsa com base em um modelo de valuation feito por engenheiros da NASA — se o resto do mercado nunca for capaz de absorver (e reagir a) essa informação.

Tabuleiro de xadrez 3D.

Não vale muito a pena pensar como um jogador de xadrez 4D em uma partida de damas.

Não se trata de enxergar o futuro, ou outra dimensão. Trata-se de enxergar com os olhos dos outros. Empatia, no fundo.

Em boa parte dos jogos, você não precisa jogar nenhum meta-jogo para se dar bem. Mas há domínios em que os meta-jogos são tão pervasivos, que a escolha é menos sobre participar vs. não participar, e mais sobre ser peão vs. jogador.

Quase como naquele ditado famoso: "em toda mesa de carteado, tem um pato. Se você ainda não identificou quem é o pato"…

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Referências

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Felipe
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